sábado

O Discurso do Rei e o Desenvolvimento do Self



Demoro um tempo para assistir aos filmes do Oscar. Principalmente os vencedores.


Tenho esse meu jeito, assim, meio avesso às convenções, ao senso comum, mas sempre acabo cedendo, ao meu tempo. Isso porque meu interesse pelo inconsciente coletivo me faz querer saber onde está o ponto em questão que marcou as pessoas de alguma forma, mesmo que diferentemente das minhas próprias formas, pois as minhas formas não são necessariamente as mais interessantes de serem analisadas. Não por mim, pelo menos. Talvez isso seja uma fuga de mim mesma, não sei, mas aí já é assunto pro meu analista.


Creio que vieram aqui para ler algo sobre trilha sonora, afinal, este é o propósito deste blog. Mas desta vez quero falar sobre outras coisas. Se ficar cansativo pra você, pode passar para o próximo post, está bem interessante, é Tarantino, então diz muito sobre música e das boas.


Sabe, dediquei muitos anos da minha vida estudando e aplicando meus conhecimentos sobre a forma como o nosso corpo reflete a nossa alma. Chamo de alma mas você pode chamar como quiser, não faz diferença. Ao estudar as teorias de Reich, Alexander Loan, dos antigos chineses, japoneses e indianos, mas, principalmente estudando o desenvolvimento e comportamento de meu próprio corpo e de muitas e muitas pessoas que já estiveram despidas de roupas e barreiras à procura de paz interior num consultório de terapia corporal, percebi e compreendi que o corpo é o livro onde está escrita toda a história de nossa vida. Adoro usar esta frase. Considero uma ótima tradução. E acredito realmente que é possível desvendar muitos mistérios da mente à partir de uma boa leitura corporal. Estou longe de ser uma expert no assunto, estou e sempre estarei apenas engatinhando, pois o conhecimento sobre a psique humana é infinito, inclusive vai além de nosso alcance já que somos...humanos.


A primeira vez que um terapeuta corporal olhou meu corpo, quase nu, e me indicou a origem de um ombro projetado para a frente, o outro mais elevado, um joelho que apontava para o lado oposto, uma tatuagem em determinado local, o formato do queixo, o jeito como eu pronunciava determinadas palavras ou até mesmo as palavras que escolhia usar, as pessoas que gostava e as que odiava... isso trouxe a mim uma consciência tão mais clara de quem eu realmente era que imediatamente aprendi a ver quem eu era, quem gostaria de ser e porque não era. Mas esta busca, a do autoconhecimento, mesmo quando nos apontam o caminho, é eterna.


Não sei quem é Colin Firth em sua intimidade, o homem por trás do ator, mas tenho certeza de que em  algum momento ele teve contato com alguns conceitos desta natureza para criar seu personagem em O Discurso do Rei. Tom Hooper certamente se aprofundou nisso e foi partindo destes princípios que dei uma pausa no filme para começar este texto pois precisava me expressar sobre isso já que estou aqui, sozinha em casa, assistindo à este filme tão, mas tão bem construído.


As palavras, depois que foram inventadas, tornaram-se verdadeiras armas. Palavras podem mudar o rumo de uma vida, palavras podem acalentar, podem concertar, apaziguar, mas podem ferir brutalmente. Palavras têm o poder de matar. Mas nem sempre nos expressamos por palavras. O tempo todo nosso corpo se expressa por nós e trai nossas palavras. É fascinante observar alguém dizendo algo e perceber em seu corpo a verdade que há por trás das palavras. Mas também é difícil passar por isso. Ver alguém te jurar algo, do fundo do coração, através de palavras e saber, pelo que conta seu corpo simultaneamente, o quão falso este juramento pode ser.


Lionel, o “fonoaudiólogo” do Rei, era um  homem de tamanha sensibilidade que subverteu os conceitos ortodoxos da medicina de sua época para se dedicar ao estudo do homem e não da máquina que muitos acreditam que este seja. Naquela época em que o filme se passa, Freud já estava borbulhando na mente de muitas pessoas que queriam ir além da caixinha previsível e felizmente, à partir dele, muitas idéias geniais se construíram, muitos métodos, muitos desafios.


Colin Firth conseguiu muito mais do que interpretar um gago muito bem. Ele traduz em seus lábios, suas expressões faciais, sua postura física, na forma como toma o ar, toda a história de vida que está por trás de sua gagueira. Claro que agora eu tenho que falar de Nathalie Portman em o Cisne Negro, pois da mesma forma ela construiu sua personagem, que também tem um trauma, uma história. Eu empataria os dois na premiação (desconsiderando a caretice, cafonisse e manipulação cultural que é o Oscar), até porque, sob esta ótica, os dois filmes falam sobre a mesma coisa: a construção do ser humano à partir da história de sua vida, da formação do ego, do desenvolvimento do self. Mas sobre Cisne Negro talvez eu fale em outro momento, provavelmente falando sobre música também, já que a OST é belíssima.


Enfim, voltando a Lionel, o filme trás outra questão interessantíssima, que é a diferença entre o profissional que tem diploma para o profissional que tem vivência. Na faculdade de Psicologia discutimos pelo mesmo uma vez por semana a questão do que é cientificamente aceito, o que é ético, a pluraridade das técnicas num só profissional ,o charlatanismo, o politicamente correto, a academia, bla-bla-bla... wiskas sachê... Não estou aqui para comprar briga com ninguém, muito menos deliberar uma arrogância que não me pertence. Minha intenção é apenas expressar minhas reflexões, pois assim compreendo melhor as coisas, posso reler este texto mil vezes e se mil vezes tentar reescrevê-lo, mil vezes ele surgirá de uma forma diferente. Acho que é exatamente por isso que eu escrevo. Escrevo em papel de pão, escrevo numa página do World, escrevo no batente da porta, escrevo numa folha solta, escrevo na contracapa do caderno... pois quando leio minhas palavras elas soam mais verdadeiras que quando as ouço, pois estão livres dos bloqueios da minha própria mente, livres de moral, livres de pudor, livres de convenções sociais, livres de cuidado com o próximo, livres de mim mesma.


Já perceberam o quanto sou prolixa, então vamos voltar a Lionel. Lionel é o cara cuja sensibilidade supera o convencional. Lionel não se formou em medicina, fonoaudiologia ou coisa que o valha. Lionel estudou as artes do corpo através do teatro (e o que somos nós em sociedade senão atores das nossas próprias vidas?), Lionel observou atentamente o comportamento humano e percebeu que toda forma de expressão (seja pelo corpo, seja pela voz) é uma forma de liberdade. Lionel entendeu que a liberdade do self é a única forma de ser quem se quer ser, de viver plenamente, de realizar seus desejos, de viver em paz e em segurança emocional.


Fico pensando nas pessoas que tentam conseguir  o que querem através da manipulação alheia. Penso nas pessoas que usam de seu charme passa seduzir os outros e conseguir o que querem, naquelas mais “diabólicas” que usam de seu poder de persuasão para diminuir o caráter dos outros a seu favor, que não fazem por merecer. Aquelas que fazem beicinho pra lhe pagarem um almoço ou coisa que o valha, que fazem o outro acreditar que deva fazer um trabalho difícil por elas porque não são capazes ou simplesmente têm preguiça de fazer ou mesmo pelo prazer de ter alguém lhe “servindo”. Penso naquelas pessoas que armam armadilhas para que o outro caia enquanto ela toma o seu lugar, que passam horas tramando como se dar bem em detrimento dos outros. Penso naqueles que têm o dom de iludir, garantindo que um dia será só você a compartilhar seu verdadeiro amor e no dia seguinte reproduz as mesmas palavras e ações com uma terceira pessoa, quem sabe até com uma quarta ou quinta. Mas que maneira é essa de ser feliz? Este tipo de prazer traz mesmo a verdadeira felicidade? Prazer e felicidade andam juntos? E penso muito mais em quem está do outro lado, permitindo ser fantoche de alguém, deixando os outros dirigirem sua própria vida. Penso nas pessoas que não conseguem dizer não, nas que não conseguem dizer o que realmente pensam, o que querem e o que não querem. E penso nas quem não fazem absolutamente nada para mudar isso, por fraqueza, por orgulho, por não se sentirem capaz, por medo, por todo a sua história de vida. Penso em mim mesma, que tantas vezes permiti isso, sendo enganada, sendo iludida, até dizer não.


Livre é aquele que pede ajuda quando precisa. Que se despe de seu orgulho e admite que precisa melhorar mas já não pode fazer sozinho. Livre é aquele que assume seu próprio self, mesmo com defeitos e luta, mas consigo próprio, para ser alguém cada vez melhor. Livre é aquele que corta o mal pela raiz quando percebe que está caindo em um abismo, mesmo sabendo que com este corte vem muita dor, sofrimento e até solidão. Os fracos não percebem que o são, e cada vez mais quando precisam diminuir os outros para crescer. E os maus, estes sabem exatamente o que estão fazendo, e gostam disso.


Às vezes me dá vontade de dar um brilho eterno de uma mente sem lembranças na minha cabeça pra esquecer definitivamente das vezes (e foram tantas) que estive nas mãos de alguém nas mais diversas situações, pois não há sensação pior do que a de ser dependente de outra pessoa. Mas estas lembranças me ajudam a ter certeza do que eu não quero pra mim. Me ajudam a ficar esperta pois as pessoas não são  boas em sua maioria. Na verdade, não existe o bem absoluto. Nada é absoluto. Parafraseando cafonamente aquele filme com o Jet Lee (“Cão de Briga”ou coisa assim), “dentro de cada um de nós há dois lobos: um bom e um mau. Sobrevive aquele que você alimentar mais”.Além do bem e do mau estão nossas fraquezas. Aquilo que nos domina e nos impede de ser quem realmente somos e onde queremos chegar.


Uma das cenas mais emocionantes deste filme, para mim, é quando o rei brada, sob as provocações de Lionel, “EU TENHO VOZ!” e neste momento se dá conta de quem realmente é e de que pode, certamente, ser esta pessoa. E seu discurso é igualmente emocionante, não pelo discurso, não quero nem um pouco falar sobre o conteúdo político, histórico ou o que quer que seja deste filme, mas seu discurso é emocionante pois é o resultado de sua batalha pessoal, é a superação de um homem que lutou contra seus fantasmas durante uma vida inteira, é a revelação de quem ele realmente é e do que ele é capaz. E Lionel é o representante daquelas pessoas que, apesar das técnicas, da ciência, do conhecimento, também considera o self que está por trás da armadura que vemos e  que mostramos. Sabe que cada um tem uma razão para ser como é. Cada um tem uma razão para ser como é. Sem julgamento.


Não sei se eu sou boba ou apenas alguém que acredita nas pessoas. Não sei se sou boba por ser alguém que acredita nas pessoas, mas tantas lágrimas caíram ao ouvir o discurso do rei, ao ver os aplausos para o discurso do rei. É que eu realmente me encanto com a superação humana, me excito com o desbravar do potencial individual, me sinto realmente feliz quando vejo alguém conquistar sua liberdade pessoal quando supera os limites do corpo e da alma, mesmo que de mentirinha como acontece no cinema.


Não sei se você, leitor, acredita no que vou dizer agora ou simplesmente quer isso para você, mas em nome da minha liberdade individual, do meu direito de ser quem eu sou e expressar minhas convicções eu te digo: existe dentro de você algo mais precioso que as maiores riquezas, algo mais misterioso que o bem e o mau, algo mais fantástico do que tudo que os olhos são capazes de ver, algo mais surpreendente do que todas as maravilhas do mundo material, algo mais importante do que tudo o que te importa hoje: existe você. Então corra, pois o tempo voa. Vá atrás de quem você realmente é. Lute pelo que realmente importa, que é saber quem você é e de tudo o que você é capaz. Mas, cuidado: não vá se perder por aí, pois no meio do caminho há um ego, há um ego no meio do caminho.